"Por ser absolutamente certo e inquestionável que não houve a venda pura e simples de uma filial ou de uma unidade produtiva isolada da Varig para a VRG, o egrégio Superior Tribunal de Justiça (STJ), quando for chamado a examinar os fatos ocorridos antes, durante e após o leilão judicial e a decidir a matéria, fará coincidir os ideais de certeza e justiça e declarará que a compra da Varig pela VRG não foi realizada sob o amparo do parágrafo único do artigo 60 da Lei nº 11.101"

Valor Econômico - 06/08/2009
A venda da Varig e a nova Lei de Falências
Jorge Lobo

Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF),durante a sessão plenária em que julgaram o Recurso Extraordinário nº 583.955-9, do Rio de Janeiro, decidiram, por maioria, ser "competente a Justiça estadual comum, com exclusão da Justiça do trabalho, para processar e julgar a execução dos créditos trabalhistas no caso de empresa em fase de recuperação judicial", havendo, no penúltimo parágrafo da fundamentação do voto condutor, um manifesto equívoco, que pode gerar péssimas consequências se não denunciado e reparado. O voto afirma categoricamente que "a controvérsia examinada nesse recurso extraordinário tem origem na venda de um ativo da referida empresa (a Varig), submetida a processo de recuperação judicial, em hasta pública, nos termos do parágrafo único do artigo 60 da Lei nº 11.101, de 2005".

Em verdade, na recuperação judicial da Varig, não houve apenas "a venda de um ativo da referida empresa", nem, tampouco, somente a alienação de uma "filial" ou de uma "unidade produtiva isolada", de que trata o parágrafo único do artigo 60 da Lei nº 11.101, como demonstrarei a seguir com fundamento em fatos e provas documentais de domínio público, como soem ser o edital de alienação judicial e o auto de leilão da Varig.

Uma leitura atenta do edital de alienação judicial, publicado na imprensa oficial e em jornais de grande circulação, e do auto de leilão da Varig, entranhado nos autos do processo, leva à certeza de que foram vendidos à VRG (1) Todas "as marcas de titularidade das empresas recuperandas que contenham a expressão 'Varig' em suas formas figurativa, nominativa e mista, em todas as suas formas e classes, bem como demais marcas de propriedade da Varig, com exceção das marcas Rio Sul e Nordeste e suas variações"; (2) Todas "as rotas domésticas e internacionais, slots e hotrans nos aeroportos domésticos e internacionais e áreas aeroportuárias nacionais e internacionais atribuídos às concessionárias Varig e Rio Sul, vigentes em março de 2006, mas excluindo Certificados de Homologação de Transporte Aéreo (Cheta), slots (espaços de voos) e os hotrans (horários de voos) pertencentes à Nordeste"; (3) Todas as "operações de transporte aéreo regular nacional e internacional da Varig e Rio Sul, incluindo os Cheta da Varig e da Rio Sul"; (4) Todos "os contratos das recuperandas" necessários ao desenvolvimento das atividades administrativas, comerciais, operacionais ou técnicas; (5) Todo "o complexo de bens e direitos relacionados à operação de voo, excluídos os bens imóveis de propriedade das empresas recuperandas e o ativo circulante pertencente às mesmas, à exceção dos bens e direitos do ativo circulante relacionados a obrigações de transporte a executar e saldo porventura existente de reservas de manutenção e de garantia relacionadas aos contratos de arrendamento das aeronaves"; (6) Todos "os manuais, logs, bancos de dados, softwares e sistemas de hardware necessários à operação"; (7) Todos "os bens e direitos relacionados ao programa Smiles, além de todas as obrigações constituídas de boa-fé atinentes a tal programa" (idem); e (8) Todos os bens móveis, "exceto obras de arte e móveis e utensílios da sede não relacionados à operação".

Em consequência, a Varig, que foi a maior e melhor companhia aérea do Brasil e da América do Sul, com uma frota de 70 aeronaves - 58 em operação no início do processo de recuperação judicial - e voos regulares para 21 cidades do exterior e 32 do país, após o leilão judicial, (1) ficou reduzida a apenas um avião, parado no solo por falta de peças de reposição, e a uma única rota de inexpressiva importância econômica (São Paulo-Porto Seguro); (2) não lhe restou sequer a consagrada marca Varig, eis que também foi vendida, nem, outrossim, logrou manter o Cheta, documento essencial para a exploração de transporte aéreo de passageiros e de carga, nem, ademais, permaneceu com os slots e os hotrans.

Por isso, ao ler e reler o voto condutor do Recurso Extraordinário nº 583.955-9 do Rio de Janeiro, em especial seu penúltimo parágrafo, recordo a lição de Carnelutti, em seu célebre ensaio "La certezza del diritto", publicado na "Rivista di Diritto Processuale Civile" em 1943, segundo a qual a certeza, no direito, tem um custo terrível, e que só se a consegue sacrificando a justiça - daí porque o eminente jus-filósofo defendeu a tese de que há uma antítese entre certeza e justiça. Sem adentrar no mérito da polêmica afirmação de Carnelutti - eis que, no plano abstrato, em um mundo ideal, a certeza e a verdade devem necessariamente desaguar na realização da justiça - no campo dos litígios singulares entre sujeitos singulares no mundo concreto, cujas decisões, sentenças e acórdãos cabem a homens falíveis, por vezes, de fato, há uma nítida e inconteste antítese entre certeza, verdade e justiça.

Por ser absolutamente certo e inquestionável que não houve a venda pura e simples de uma filial ou de uma unidade produtiva isolada da Varig para a VRG, o egrégio Superior Tribunal de Justiça (STJ), quando for chamado a examinar os fatos ocorridos antes, durante e após o leilão judicial e a decidir a matéria, fará coincidir os ideais de certeza e justiça e declarará que a compra da Varig pela VRG não foi realizada sob o amparo do parágrafo único do artigo 60 da Lei nº 11.101, razão pela qual a VRG, como sucessora universal da Varig, responde por todas as obrigações e dívidas, de qualquer natureza e espécie, da sucedida, daí aplicar-se ao caso concreto: (1) quanto às obrigações e dívidas em geral, o artigo 1.146 do Código Civil; (2) quanto às obrigações e dívidas tributárias, o artigo 133 do Código Tributário Nacional (CTN); (3) quanto às obrigações e dívidas trabalhistas, os artigos 10 e 448 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Jorge Lobo é advogado, mestre em direito da empresa pela Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ) e doutor e livre docente em direito comercial pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

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